Livro de Tárik de Souza expõe ideias do criador dos Fradinhos, de Ubaldo, o Paranóico, da Graúna e do Cemitério dos Mortos-Vivos
Brasil de Fato | Maria do Rosário Caetano, de São Paulo
“Como se faz humor político?” Esta pergunta foi feita a Henrique de Souza Filho, o Henfil (1944-1988), pai da Graúna, do bode Orelana, do cangaceiro Zeferino, dos fradinhos Comprido e Baixim. E também dos futeboleiros Urubu, Bacalhau, Cri-Cri e Popó. Corria o ano de 1984 e ele estava no auge da fama. Era um popstar que vendia milhares de revistinhas e livros. E brilhava nos palcos, na TV, nos jornais e na última página da revista Istoé, com hilária Carta (endereçada semanalmente) à Mãe.
A peça “A Revista do Henfil”, montada pela trupe de Ruth Escobar correra o Brasil, lotando teatros. Os cartuns do irmão do Betinho (sociólogo e ativista político) e Chico Mário (compositor e violonista) eram apreciados por milhões de brasileiros.
Tornara-se até verso de belíssima composição de João Bosco & Al-dir Blanc, “O Bêbado e a Equilibrista”, que Elis Regina transformaria em retumbante sucesso no disco “Essa Mulher”/1979 (“O bêbado com chapéu-côco/ fazia irreverências mil/ pra noite do Brasil/ Meu Brasil!/ que sonha com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu”…).
Suas declarações políticas eram ouvidas com atenção. Seus problemas de saúde (a hemofilia, mal que também atormentava seus irmãos Betinho e Chico Mário) eram acompanhados por muitos brasileiros. Até um filme (o longa-metragem “Tanga, Deu no New York Times”), Henfil planejava fazer. E faria nos anos seguintes.
Com tantos afazeres e com os problemas de saúde que encurtariam sua vida (Henfil morreu de Aids, contraída em transfusão de sangue, com apenas 43 anos), o cartunista convocou o amigo e parceiro (na criação de Ubaldo, o Paranóico, um de seus personagens mais famosos) Tárik de Souza, para ajudá-lo. Ou seja, o livro – encomendado pelo Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e pela Editora Vozes – seria escrito por Tárik, um dos mais importantes críticos musicais do país, a partir de uma longa conversa a ser mantida pelos dois.As conversas se desdobraram em encontros dos mais animados. E o livro chegou ao público ainda em 1984.
Reedição
Passados 30 anos, Tárik sentiu que a publicação, que nascera como “um improviso jazzístico”, resistira à ação do tempo e merecia nova chance. A Editora Kuarup caprichou na reedição do texto. Tárik escreveu perfil introdutório do parceiro Henfil e anexou nota explicativa da origem do livro. E pediu prefácio a Sérgio Augusto, jornalista, pesquisador e escritor (Esse Mundo É Um Pandeiro – A Chanchada de Getúlio a JK, Companhia das Letras, 1989), além de grande amigo de Henfil, com quem conviveu principalmente nos anos de ouro do semanário Pasquim.
Em seu texto, Sérgio Augusto define Henfil como “o mais singular, brilhante, moleque e engajado cartunista de sua geração” e põe-se a imaginar o que faria o amigo setentão, se vivo fosse e estivesse no “gozo de suas faculdades físicas e mentais”? E arrisca palpites: “Provavelmente, estaria atirando em todas as direções, testando as mídias disponíveis, quem sabe confinado a um site na internet onde pudesse dar vazão a seu humor malicioso, anárquico, raivoso, grotesco – e politicamente incorreto para os padrões de hoje”.
“Como Se Faz humor Político – Depoimento de Henfil a Tárik de Souza” traz na capa imagem sorridente e colorida de Henrique Souza Filho. Traz também a econômica imagem da Graúna (que Tárik define como “sua mais genial e sucinta criação, nascida de um mero ponto de exclamação”) com três máscaras, uma sorridente como a de seu criador.
Em 126 páginas, Henfil fala do processo de criação de seus desenhos, de suas criaturas (inclusive do polêmico Cabôco Mamadô, que sepultava colaboracionistas (e que enterrou, também, criadores do naipe de Elis Regina e Drummond), de sua educação religiosa em Minas Gerais, de futebol (torcia pelo Atlético Mineiro, em BH, e tinha simpatia pelo Flamengo, no Rio) e das agruras políticas e sociais do Brasil.
Para completar a reedição, o livro traz cinco cartuns escolhidos pelo próprio Henfil. Num vemos os terríveis mascotes do Flamengo (Urubu), do Vasco (Ba-calhau), do Fluminense (Popó, ou pó de arroz) e Cri-Cri (Botafogo). Em outro, assinado por ele e Tárik, aparece uma figura feminina que vai apresentar-se a Ubaldo, o paranóico. Ele tapa a boca da mulher e implora: “Não fala! Qualquer tapa e eu conto tudo”. Na página dedicada ao misto de Exu e babalorixá Cabô-co Mamadô (Cemitério dos Mortos-Vivos), vemos Paulo Maluf com seus óculos fundo de garrafa, com asas e sobrevoando túmulos.
No cartum da Graúna, aparecem, sob sol escaldante, o Cangaceiro Zeferino seviciando a pequena ave. Chega o bode Orelana e questiona o que vê: “Não me parece ser este um típico comportamento de esquerda….” A Graúna retruca, em êxtase: “Hora de gozar a vida, Orelana, eu sou de direita…”.O primeiro dos cartuns selecionados por Henfil é, talvez, o mais sádico (e repulsivo) já publicado no Brasil: Baixim manda o ingênuo Cumprido fechar os olhos e coloca algo na boca do longilíneo frade, que devora tudo. “Crunch! Crunch!”… E pergunta: “O que é isto, Baixim? Fritas?”. Ao que o sádico fradinho responde: “Casquinha de leproso!”.
Será que, hoje, Henfil selecionaria este cartum para a nova edição de “Como se Faz Humor Político”? Com a palavra, Tárik de Souza: “Sensível como ele era, tenho certeza que muitas coisas que desenhou na época, ele não faria em tempos politicamente corretos. No livro, ele já fala da preocupação em ferir as pessoas. Mas se você for analisar o que o Charlie Hebdo publicava (e ainda publica) a possível crueldade do Henfil em uma tira ou outra, nem chega perto”.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Tárik de Souza fala da temporada de Henfil nos EUA (onde buscou tratamento de saúde e espaço para suas criações), do “enterro” simbólico de Elis Regina e Drummond no Cemitério dos Mortos-Vivos, do Cabôco Mamadô, e da criação conjunta de “Ubaldo, o Paranóico”.
Brasil de Fato – Em que circunstâncias você conheceu Henfil? Como se tornaram amigos, a ponto de criarem juntos o Ubaldo, o Paranóico?
Tárik de Souza – Quando foi lançado o Pasquim, me interessei pelo jornal (até hoje tenho a coleção completa) no qual queria muito trabalhar, já que tinha completa afinidade com seus integrantes, linha editorial etc. Quando garoto, eu editava um jornal de humor na escola e sempre quis participar de um. Conheci o Henfil e o Jaguar no júri de um festival de música em Cachoeiro do Itapemirim, para o qual me convidei apenas para conhecê-los e tentar entrar para o jornal. Logo nos tornamos amigos e acabei ficando mais próximo do Henfil, por afinidades mineiras (minha família é toda de lá), políticas e estéticas, tanto na música quanto nos quadrinhos
O livro Henfil – Como Se Faz Humor Político teve uma edição encomendada pela Vozes e pelo Ibase. Esta coleção teve vida breve ou gerou vários livros? Em que esta nova edição enriquece a anterior?
A coleção teve vários outros títulos: Como se Faz Análise da Conjuntura, de Herbert de Souza, o Betinho, Como se Faz para Sobreviver com um Salário Mínimo, de Ana Lagoa, Como se Faz uma Comunidade Eclesial de Base, de Dom Luis Fernandes, Como se Faz a Luta dos Bairros, de Jó Resende, Como Cuidar de Bebês de Zero a um Ano, de Maria Teresa Maldonado, Como Trabalhar com o Povo, de Clodovis Boff. A nova edição traz um perfil do Henfil e apresentação feitos por mim, além de um prefácio do Sérgio Augusto. Saiu num formato ampliado – a anterior era em edição de bolso.
Henfil viveu pouco, mas intensamente. E num tempo muito polarizado. Com os “a favor” e “os contrários” à ditadura militar. Com seu humor corrosivo, enterrou Elis Regina, Drummond, entre outros, no “Cemitério dos Mortos-Vivos do Cabôco Mamadô”. O episódio com Elis se deve à participação dela em projeto musical das Olimpíadas do Exército? E com Drummond, o que houve?
Acredito que o enterro da Elis no Cemitério dos Mortos-Vivos teve a ver com o episódio de ela ter cantado nas Olimpíadas do Exército. Quanto ao Drummond, se não me engano, foi pelo fato dele se omitir em relação à ditadura. Elis e Henfil reataram e ficaram muito amigos, não só por causa de “O Bêbado e a Equilibrista”. Elis foi muito solidária também nas greves do ABC. Chegou a ligar para mim para que eu me engajasse na campanha de donativos para os grevistas.
O bode Francisco Orelana teve mesmo o compositor baiano, Elomar, como fonte de inspiração? Que outras fontes (pessoas) são reconhecíveis no trabalho de Henfil?
O bode Orelana foi, de fato, inspirado no Elomar. Zeferino é um retrato estilizado do pai do próprio Henfil. A onça Glorinha homenageia uma das irmãs do cartunista. O jornalista Humberto Pereira foi o molde do Henfil para o Fradinho Comprido.
A geração anterior à de Henfil conquistou imenso sucesso com o humor gráfico. Millôr (1923-2012), Ziraldo e Verissimo, nomes estelares, consagraram-se também com ilustrações, traduções, livros para adultos ou infantis. Foi o momento histórico que fez de Henfil um “astro pop”? Há alguém, hoje, na ativa, que desfrute de sucesso similar? Angeli, Laerte?
Há vários astros pop no humor de hoje, no desenho ou não, como discípulos do Henfil, o Angeli, o Laerte (o Glauco também foi), além do Zé Simão, um craque do humor concretista. E ainda há o Reinaldo (que começou no Pasquim) e a turma do Casseta &Planeta e, agora, o pessoal do Porta dos Fundos (entre eles, o João Vicente, filho do Tarso de Castro, um dos fundadores do Pasquim).
O fracasso de Henfil nos EUA o marcou de forma negativa? Ou retornar e fazer a revista Bicho, uma publicação-manifesto, o fez esquecer os dissabores com os poderosos sindicatos de quadrinhos estadunidenses?
Henfil teve duas terríveis decepções com a pátria da (estátua da) Liberdade. A primeira com a medicina, já que se mudou porque achou que teria melhores condições de tratar sua hemofilia. Descobriu que lá a saúde era tão ruim quanto a daqui – até porque a matriz patrimonialista é a mesma. Por isso, o Obama sofreu tanto para tentar dar uma melhoradinha com seu “Obamacare”… A segunda foi com a liberdade de expressão. Daqui, da ditadura, imaginávamos que ela seria ilimitada nos EUA. Mas, lá eles não precisavam de censura porque o próprio público reacionário já fazia a rejeição. Os quadrinhos dele foram considerados sick (doentes) e rejeitados pelo “sistemão”. Ele teria que sobreviver na marginalidade como o Robert Crumb. Aqui, apesar da ditadura, ele era popular e conseguia furar o cerco dos Catões de plantão.
Por que ele, que se saiu tão bem no humor gráfico, não conseguiu fazer de “Tanga – Deu no NY Times” (1987) um bom filme?
“Tanga” é um filme feito por um quadrinista. Henfil desenhou-o quadro a quadro. Definitivamente, não é um filme de cineasta, o que não quer dizer que seja ruim. Retrata uma época e antecipa muitas “cabeçadas” da esquerda nativa.
Que papel a imprensa alternativa, em especial o Pasquim, ocupou na imensa projeção de Henfil? Ela, a mídia de combate à ditadura, foi fundamental para criar a mística que o cercou?
A imprensa alternativa foi um sopro de vida na mídia. Muita coisa iniciada pelo Pasquim (incluindo a informalidade das entrevistas) foi assimilada pelos chamados jornalões. A ajuda foi mútua: tanto a imprensa alternativa promoveu o Henfil (que também atuou muito na grande imprensa em diversas frentes, e até na TV Mulher, da Globo, além da imprensa sindical) quanto ele ajudou a dinamizá-la e a dilatar seus limites.