Todos os dias milhares de líbios e imigrantes africanos organizam comboios para chegar até a fronteira com a Tunísia e abandonar o país. Os mais pobres arriscam a travessia do Mar Mediterrâneo. Tudo para fugir de 1700 milícias que combatem uma guerra civil sem fim e sem solução, a não ser a limpeza étnica
Brasil de Fato | Achille Lollo, de Roma (Itália)
Hoje, na Líbia, as estruturas institucionais são uma lembrança aleatória do passado, já que o modelo de unidade territorial desapareceu após a formação de dois governos, um em Tobruk e outro em Trípoli, além de um califado em Derna.
Tais “instituições” controlam apenas três regiões, equivalentes a um quarto deste imenso país. De fato, o território da Líbia foi, definitivamente, segmentado pelos clãs, os chefes das milícias, os conselhos tribais, as seitas islâmicas (Irmandade Muçulmana e salafitas), os moderados. Por último, os jihadistas associados ao Estado Islâmico (EI) e os remanescentes grupos ligados a Al-Qaeda.
Somente o governo chefiado por Abdullah al-Thani é reconhecido internacionalmente, apesar de ter sido eleito em junho do ano passado com apenas 17% dos líbios com direito a voto.
Por isso, houve uma revolta generalizada que obrigou Abdullah al-Thani, a deixar a capital Trípoli para se refugiar primeiro em Bengazi e depois em Tobruk, a quase 20 km da fronteira com o Egito. Nessa cidade ele requisitou um grande hotel para albergar os funcionários e os ministros do seu governo, que desde julho vivem praticamente entrincheirados aí.
A autoridade desse governo junto dos líbios é, na prática, nula. Somente as transnacionais e as empresas europeias que assinaram os novos contratos no “quarto de hotel ministerial” respeitam os decretos-leis assinados por Abdullah al-Thani.
Não existindo um verdadeiro exército líbio, esse governo negociou o cargo da defesa com o ex-general Khalifa Haftar que colocou à disposição do governo de Tobruk sua milícia denominada “Aliança das Forças Nacionais”. Uma pequena task force organizada em janeiro de 2012 pelos oficiais do exército egípcio, graças ao dinheiro da CIA e da Arábia Saudita.
De fato, não podemos esquecer que o ex-general Khalifa Haftar, foi o Chefe de Estado Major de Kaddafi que, em 1987, simulou sua captura na fronteira do Cha-de para ser resgatado pelos EUA, que o mantiveram “congelado” nos quarteis da CIA, em Langley, em Virgínia, para de-pois voltar à Líbia como “libertador”, após o assassinado de Kaddafi.
Os principais aliados do governo de Tobruk são o presidente do Egito, o general Al Sisi e a monarquia da Arábia Saudita. Ambos querem liquidar fisicamente os grupos ligados à Irmandade Muçulmana na Líbia como no Egito. Por isso, o novo rei da Arábia Saudita, Salman bin Abdulaziz Al Sal, da mesma maneira que seu antecessor, financia todos os custos do governo de Tobruk, visto que a produção do petróleo e do gás, com os atuais preços em queda, ficou praticamente irrelevante para garantir o custo das operações militares, bem como a sustentação da administração pública.
A posição da monarquia saudita endureceu muito nos últimos dois anos para contrastar com as manobras geopolíticas da Turquia e do Qatar, que, por sua parte, reivindicam um papel central no mundo islâmico sunita pela intervenção direta na guerra civil síria, na iraquiana e logicamente na da Líbia. Por isso, apoiam a Irmandade Muçulmana e todos os grupos salafistas da Líbia, históri-cos membros do fundamentalismo islâmicos e aliados da Irmandade.
Frente Islâmica em Trípoli
Logo após o assassinato de Kaddafi, a Irmandade Muçulmana concentrou a maior parte de suas forças em Mesurada, visto que esta cidade é o principal porto petrolífero da Líbia, equipados com modernos terminais de carga para petróleo e gás, além de ser o portal do comércio exterior da Líbia e, portanto, a cidade dos grandes empresários líbios.
Por isso, quando os grupos moderados ganharam as primeiras eleições em 2012, a Irmandade logo transformou Mesurada e suas milícias em um Estado dentro do Estado, ao ponto que o então primeiro-ministro Ali Zeidan pagou 5 milhões de dólares à milícia de Mesurada por sua “proteção pessoal”. Mesmo assim ele foi sequestrado sofrendo um rápido julgamento político que o obrigou a exilar-se na Suíça.
A nova Frente Islâmica, chamada Fajr Líbia (Alvorada da Líbia) foi criada pela Irmandade Muçulmana logo após as eleições de junho de 2014, porque as mesmas foram consideradas “uma completa fraude”. Além disso, os moderados não aceitavam legitimar na Líbia a formação de um Estado islâmico.
Por outro lado, a fuga de Abdullah al-Thani para Tobruk com todos os funcionários e ministros do governo alimentou, ainda mais, a decisão dos grupos islâmicos de transformar a região da Tripolitânia em um autêntico Estado Islâmico. Um projeto que logo recebeu a aprovação política da Turquia e a sustentação financeira do Qatar. Por isso, durante quase quatro meses a capital Trípoli e seus arredores foram objeto de sangrentos combates, entre as milícias islâmicas ligadas à Fajr Libia e às milícias da região montanhosa de Zentan, que defendia o governo de Abdullah al-Thani.
O combate acabou quando os grupos islâmicos conseguiram, finalmente, “libertar” os três aeroportos de Trípoli, sendo que dois desses ficaram totalmente destruídos. Assim com a conquista da então capital Trípoli foi logo formado outro “Governo de Salvação Nacional”, que foi reconhecido apenas pela Turquia e pelo Qatar.
Chefiado por Omar al-Hassi, o governo “islâmico” de Trípoli se recusou a participar das conversações de paz que a ONU tentou realizar em Genebra, chamando à mesa de negociação as principais lideranças políticas e étnicas.
Ainda hoje, os islâmicos do Fajr Libia rejeitam todo tipo de mediação internacional por que acreditam que o exército do Egito, além de já ter ocupado importantes localidades situadas ao longo da fronteira e perto da cidade de Tobruk, pretende tomar posse de outras regiões da Cirenaica, a sul de Bengazi, onde estão localizadas importantes reservas de petróleo e de gás ainda inexploradas. Por outro lado, a caça aos militantes da Irmandade Muçulmana que a polícia e, sobretudo, o exército realizaram em todo o Egito, logo após o golpe de Esta-do planejado pelo general Al Sisi, é outro argumento que justifica a recusa de negociar com Abdullah al-Thani, vul-garmente chamado de “filhote do cão egípcio Al Sisi”.
No plano militar, as milícias islâmicas que integram a Fajr Libia conseguiram reestabelecer o controle das ligações rodoviárias entre Trípoli e Mesurada e da capital até a fronteira com a Tunísia. Um sucesso que segundo Abdullah al-Thani aconteceu graças aos “comandos” enviados pela Turquia e Qatar, muito bem disfarçados com os milicianos islâmicos líbios.
Aliás, teriam sido esses “grupos especiais” que chegaram em Jufra, a 600 quilômetros ao sul de Trípoli, para abrir alguns antigos paióis do exército de Kad-dafi e levar para Misurada todos os tambores de “gás mostarda”, com os quais é possível preparar armas químicas.
Segundo o jornal Asarq Al-Awsat – publicado em Londres e ligado à monarquia saudita – o novo Parlamento Revolucionário de Trípoli (GNC) teria autorizado a realização de testes com armas químicas nos arredores da cidade de Mizda, a 160 quilômetros da capital Trípoli.
Se as revelações do jornal forem confirmadas pelos organismos da inteligência ocidental (CIA, M15, SDECE), o uso das armas químicas na guerra civil sem fim entre os dois governos da Líbia, poderá transformar-se em uma verdadeira hecatombe. Um contexto que torna cada vez mais imprópria uma possível intervenção de tropas da ONU.
Califado em Derna?
Tudo indica que a antiga milícia islâmica Ansar al Sharia, que, no passado ficou famosa por ter atacado o consulado dos EUA, em Bengazi, e morto a tiros todos os seus integrantes e o então embaixador estadunidense, Christopher Stevens, teria rompido com Al-Qaeda para se associar ao Estado Islâmico. De fato, o líder do EI, al Baghdadi, de Mossul, logo qualificou esse grupo “um integrante do EI”, legitimando assim o recém califado crido em Derma. Não é casual que o emir desse califado seja um miliciano, originário do Iêmen, que combateu na Síria nos batalhões do EI com o nome de guerra Abu al-Bara el Azdi.
O dito califado pode contar com o apoio e o “respeito” de outra poderosa milícia islâmica, chamada “Conselho da Shura dos Jovens Islâmicos”, que controla uma parte da costa nordeste do país. Segundo algumas informações os homens dessa milícia ganham milhares de dólares com o tráfego de vidas humanas, já que cada líbio ou africano que queria pegar uma barcaça para tentar chegar à Itália, devia pagar cotas de 3.000 até 5.000 euros. Cerca de 6.000 imigrantes foram embarcados nos últimos quatro meses dessas localidades.
Entretanto, a pergunta que mais circula nas salas das chancelarias europeias e, sobretudo, entre os membros do governo italiano – que nos últimos dez meses teve que socorrer 13.000 imigrantes no Mar Mediterrâneo –, é a seguinte: “Até quando as milícias líbias poderão suportar os custos e o peso das chacinas dessa guerra?”.
Ninguém pode e consegue dar uma resposta definitiva, visto que na Somália aconteceu um processo de desestabilização quase parecido ao da Líbia. É bom lembrar que na Somália houve duas intervenções militares – uma estadunidense e outra italiana – e ainda hoje o país continua dividido, refém dos grupos islâmicos que controlam muitas regiões do país e até bairros da capital Mogadíscio.
Por outro lado, a queda dos preços do petróleo acirrou ainda mais as tensões entre os contendentes líbios, visto que ficou evidente que, só quando houver ”Um Único” vencedor, é que será possível garantir a reconstrução do país e a administração dos lucros obtidos com a venda do petróleo e do gás. Infelizmente, esse princípio vai justificar as chacinas e os massacres que desde a “libertação em 2011” nunca acabaram.